sexta-feira, 4 de maio de 2012

Carne de segunda, petisco de primeira no Festival de Comida di Buteco


Cortes menos nobres e miúdos fazem tanto sucesso nas preparações do festival que, além de estarem na maioria dos pratos concorrentes, chegam a faltar nos açougues da Grande BH
Publicação: 04/05/2012 06:00 Atualização: 04/05/2012 07:37
Era para ser um prato de língua empanada, mas, acompanhado do molho de vinho com conhaque e um toque especial que o inventor não revela para ninguém, vira um tira-gosto requintado. No açougue, muitas vezes, o pescoço de peru é taxado como “carne de segunda” e enfrenta preconceito, mas servido numa panela de pedra sobre um réchaud que mantém a temperatura do prato, ganha ares de sofisticação – mesmo que ainda precise ser degustado com a ajuda das mãos. O sabor diferenciado de petiscos elaborados com carnes nada nobres atrai consumidores aos montes aos bares do festival Comida di Buteco, que, por semana, consomem até 600 quilos desses cortes e miúdos, e, consequentemente, esvaziam os estoques de açougues e frigoríficos.
Fátima e Marcílio Furtado, do Curin Bar, tiveram de recorrer a um segundo fornecedor para garantir que o pescoço de peu chegasse às mesas  (Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Fátima e Marcílio Furtado, do Curin Bar, tiveram de recorrer a um segundo fornecedor para garantir que o pescoço de peu chegasse às mesas

Língua, rabo de boi e dobradinha são três tipos de carne que praticamente desaparecem do mercado neste período. É preciso encomendá-las com antecedência em alguns açougues. A proximidade com o inverno aumenta em até 50% a procura por carnes mais ‘gordas’, e o Comida di Buteco pode aumentar ainda mais esse percentual. Dependendo de quantos bares escolhem usar os cortes, a procura pela iguaria pode ser longa, tanto para os bares quanto para o consumidor caseiro. Além disso, os dois primeiros pedaços de cada compra são cobrados por unidade, o que os torna ainda mais raros.

A sócia do açougue Sabor da Carne, no Bairro Sagrada Família, Adriana Paula Proence, diz que nos últimos pedidos recebeu até 15 vezes menos que o total solicitado e, por isso, o estoque chegou a ficar vazio. É praticamente o tempo de ele receber a remessa, verificar a lista de encomendas e fazer a entrega. “Pedimos 30 rabos de boi e mandaram apenas dois. Dobradinha vieram só três quilos dos 30 pedidos. Costelinha também falta e, com isso, o preço deve aumentar”, diz ela, ressaltando que diminuiu a margem de lucro para garantir as vendas, mas deve subir os valores em até 18%. A previsão é de que o quilo da costelinha suba de R$ 10,90 para R$ 12,90.
João Batista Soares, do Bar do João, conta que a língua conquistou até os paladares mais desconfiados do estabelecimento (Marcos Vieira/EM/D.A Press)
João Batista Soares, do Bar do João, conta que a língua conquistou até os paladares mais desconfiados do estabelecimento

Não à toa, a costela de porco é uma das carnes mais usadas nos pratos do festival gastronômico. Honrando a temática de boteco, quase metade dos bares neste ano usam um tipo de carne de segunda no petisco. Ao todo, são 17 dos 41. E a favorita dessa lista é a costelinha. Seja regada a cachaça ou acompanhada de molho de goiabada com alecrim, a carne aparece em quatro pratos, enquanto o nobre filé mignon é usado em apenas um. Mas lagarto, língua e acém também estão nessa lista.

Depois de ousar nas receitas de edições passadas do festival, com pratos feitos com língua de boi e bucho de porco, dessa vez a aposta no Curin Bar, no Bairro Santa Mônica, na Pampulha, foi na canjiquinha com pescoço de peru. À primeira vista, o sucesso poderia ser uma interrogação. Mas até mulheres e crianças aprovaram a receita, segundo seus criadores, o casal Fátima e Marcílio Furtado. A demanda é tão grande – supera meia tonelada por semana – que eles tiveram que procurar mais de um fornecedor para garantir o abastecimento. “Comprávamos num supermercado próximo ao bar, mas eles tiveram dificuldade em entregar e precisamos fazer contrato com um distribuidor da Ceasa”, afirma Marcílio, mais conhecido pelo apelido que dá nome ao bar. Ele garante que quem quiser saborear o prato será obrigado a ir ao estabelecimento, pois os estoques dos fornecedores estão zerados pelo menos até o encerramento do festival.
No Açougue Sion, Geraldo Antônio dos Santos recusou contrato com um bar para garantir os cortes exóticos aos clientes domésticos (Marcos Michelin/EM/D.A Press)
No Açougue Sion, Geraldo Antônio dos Santos recusou contrato com um bar para garantir os cortes exóticos aos clientes domésticos

Fornecedores

Até o ano passado, o Açougue Sion fornecia maçã de peito para bares do festival, mas a freguesia chiou com a falta do produto e o empresário Geraldo Antônio Santos teve que recusar o contrato para esse ano. “Vendemos, em média, 30 quilos por semana e, por um mês e meio, passávamos a vender 10 vezes mais. Mas era só um produto e o resto do boi ficava encalhado”, afirma Santos. E não tem como deixar a freguesia na mão. As carnes de segunda representam um terço das vendas mensais do estabelecimento e alguns pedaços até mesmo superam cortes especiais. “Quando inaugurei o açougue, há 17 anos, sequer vendia essas carnes, mas a freguesia pediu e a demanda só tem aumentado”, afirma o proprietário do açougue.

Sabor que não tem preço

Cortes especiais, tratamento diferenciado na mesa e o preconceito que rondava certos cortes de carne foi por água abaixo. Se antes as carnes classificadas como ‘de segunda’ eram relegadas aos estabelecimentos também taxados, pejorativamente, como ‘copos sujos”, uma gastronomia mais elaborada modificou o perfil desse consumidor, que chega a trocar picanha por língua bovina.

Frequentadores assíduos de bares, os namorados Luiz Henrique Dias e Flávia Teixeira atestam que atualmente é raro achar um amigo que não goste de maçã de peito, língua e até pescoço de peru, desde que bem manuseados e feitos num local limpo e organizado. “É um prato de boteco como os demais”, diz o representante comercial. Mas o professor Rodrigo Souza discorda que sejam pratos comuns. Na sua avaliação, uma língua bem preparada supera até a tradicional picanha, principalmente se acompanhada de cerveja gelada. Ele explica que, anos atrás, aprendeu a saborear o prato com um parente e, de lá para cá, a língua tornou-se umas das suas carnes favoritas. “O sabor é o mais importante e é uma carne muito saborosa”, diz ele.
Luiz Henrique Dias e Flávia Teixeira experimentam a canjiquinha com pescoco de peru do Curin Bar, no Bairro Santa Mônica (Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Luiz Henrique Dias e Flávia Teixeira experimentam a canjiquinha com pescoco de peru do Curin Bar, no Bairro Santa Mônica

Especialista em pratos feitos com língua desde que ganhou o festival Comida di Buteco em 2007, o empresário João Batista Soares, do Bar do João, no Bairro São João Batista, em Venda Nova, se recorda que muitas vezes os fregueses eram obrigados a pedir duas porções, uma vez que mulheres e crianças normalmente nem provavam a língua. Atualmente, no entanto, o prato é o campeão de vendas, superando a combinação de filé e fritas.

"Está cada dia mais popular. Tem gente que ainda pergunta: “É língua?”, mas não resiste e se vê o amigo comer também experimenta”, afirma ele. Prova das afirmações é que, por semana, ele vende cerca de 400 quilos de língua, seja cozida ou empanada. A previsão do dono do bar é de que até o dia 13 – data de encerramento do Comida di Buteco – sejam comercializados mais 1,2 mil porções, dobrando o total do que já foi vendido. (PRF)

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