quinta-feira, 26 de julho de 2012

A arte de salvar vidas. Vinte e quatro horas com o Samu Acompanhamos o trabalho de uma equipe de urgência médica em Belo Horizonte, onde o serviço recebe 2 000 chamadas por dia


por Carolina Daher e Cedê Silva | 

Odin

Na sexta (6), às 19h35: após sofrer obstrução das vias aéreas, Francisco Rocha é levado pelo motorista Igor Barroso e pelo enfermeiro André Leite para a ambulância

Pelo rádio, o pedido de socorro: um homem aparentando 30 anos está caído, inconsciente, na Rua Floresta, no Alvorada. Quando a voz se cala, inicia-se imediatamente uma movimentação cronometrada. Sem dizer uma única palavra, a médica Ana Paula Loures Linhares, a enfermeira Karina Mara Souza e o motorista Enivaldo Carlos de Oliveira seguem apressados para a ambulância parada em frente à casa da Rua Paraíba, na Savassi. Eram 13 horas e o terceiro atendimento da equipe naquela sexta dia 6. VEJA BH, pelas 24 horas seguintes, acompanhou a rotina em uma das bases do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) da capital, que, embora seja um programa federal, é de responsabilidade da Secretaria Municipal de Saúde. O dia a dia é frenético para seus 600 profissionais.

No veículo equipado com aparelhos sofisticados como o AutoPulse, que imprime força e velocidade à massagem cardíaca e pode interromper um processo de parada, Ana Paula segue as recomendações que continuam chegando pelo rádio. Naquela ocorrência, para ir da Savassi ao Alvorada, seria preciso vencer um trânsito intenso. A sirene estava ligada, mas poucos motoristas abriram passagem. Assim que a ambulância entrou na ruela indicada pela central de atendimento, antes mesmo de descer, Ana Paula disparou: “Está morto”. Tinha razão. Não havia mais como salvar o rapaz. “A maior frustração é não chegar a tempo. E o nosso tempo é o da vida, não o do relógio”, disse. Solteira e sem filhos, ela trabalha no serviço de urgência há sete anos. Nesse período, viu de tudo. Um único minuto, diz ela, pode ser decisivo no atendimento de uma emergência.

Quando uma equipe é designada para atender a um chamado, tem apenas sessenta segundos para sair de sua base. Há três anos, uma unidade básica do Samu levava, em média, dezenove minutos para chegar ao local da ocorrência. Graças ao aumento do número de bases espalhadas pela região metro­­politana, de treze em 2009 para 27 em 2011, e do número de ambulâncias em operação, o tempo médio caiu para doze minutos. Há hoje 29 veículos preparados para o atendimento móvel de urgência — cinco deles ficam em cidades vizinhas, mas dão apoio também à capital. Seis das ambulâncias são do tipo Unidade de Suporte Avançado (USA) e transportam sempre uma equipe de três pessoas, incluindo um médico. As outras são Unidades de Suporte Básico (USBs), que levam, além do motorista, um ou dois técnicos em enfermagem. A meta da prefeitura é ampliar a frota e, até 2014, chegar a um total de 41 veículos adaptados.

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Urgências por toda parte: o motorista Enivaldo Oliveira e a médica Ana Paula Linhares seguem da Savassi para o bairro Alvorada


No último Índice de Desempenho do Sistema Único de Saúde (IDSU 2012), divulgado em março, Belo Horizonte obteve nota 6,4, média mais alta que a de capitais como São Paulo (6,2), Brasília (5,3) e Rio de Janeiro (4,3). Um dos critérios considerados na avaliação foi o indicador Proporção de Acesso dos Óbitos por Acidente - ou seja, o número de mortos por ocorrência -, que tem relação direta com o trabalho do Samu. Nesse item, a capital mineira obteve nota 8,3, considerada bastante satisfatória. Apesar dos investimentos feitos desde 2009 nas novas ambulâncias e também na construção de uma moderna central no bairro Coração Eucarístico, ainda há muito que fazer. Um dos desafios é melhorar a comunicação com os hospitais. Não é raro que um paciente fique dentro da ambulância porque não existem vagas em hospitais. “É terrível salvar alguém e não ter para onde levá-lo”, afirma a enfermeira Karina Souza, há um ano e meio no Samu. Ela diz que foi difícil acostumar-se com a rotina. “No início, o barulho da sirene custava a sair da minha cabeça.” 

Muitas vezes, o paciente está em um local de atendimento e precisa ser transferido para outro que disponha de mais recursos. Foi o que se passou com a cabeleireira Selma Gonçalves Rodrigues, de 54 anos. Ela sofreu um infarto pela manhã e foi encaminhada para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) no bairro Esplanada. Como precisava ir para um Centro de Tratamento Intensivo (CTI), teve de ser transferida para o Hospital São Francisco, no Concórdia. A mesma situação ocorreu com a pequena Júlia Gabrielly Almeida Santos, de apenas 4 meses. Internada no Hospital Infantil João Paulo II, ela foi transportada para o Hospital das Clínicas, onde seria submetida a uma cirurgia intestinal de emergência. “É sempre emocionante atender uma criança”, contou a enfermeira Karina, com o bebê no colo. “Tudo é muito mais delicado do que com um adulto. O cuidado tem de ser redobrado.” A mãe da menina aprovou o trabalho do Samu. “Nesse momento difícil, todos foram muito carinhosos”, comentou. “Isso faz toda a diferença.”

Outro desafio na gestão do Samu é melhorar a integração com o Corpo de Bombeiros. “Em um momento de desespero, a pessoa liga para os Bombeiros e para o Samu”, explica Aline Aparecida Lourenço de Assis, supervisora da Central. Até 2009, quando isso acontecia, dois veículos saíam para atender a um mesmo pedido de socorro. Nos dois últimos anos, os Bombeiros e o Samu vêm trabalhando para evitar a duplicidade de esforços. A unidade que é enviada desnecessariamente a um atendimento poderá fazer falta se ocorrer, por exemplo, um acidente de grandes proporções, com muitas vítimas.

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(1) Acompanhada da enfermeira Karina Souza, a médica constata a morte do rapaz que estava caído na Rua Floresta; (2) Infarto: a cabeleireira Selma Rodrigues seguiu às pressas para o Hospital São Francisco; (3) Júlia Gabrielly, no colo da enfermeira Karina, é levada ao Hospital das Clínicas para ser submetida a uma cirurgia intestinal de emergência


Cada médico contratado pelo Samu cumpre 24 horas de plantão por semana: doze horas dentro de uma ambulância e outras doze na Central, trabalhando na triagem das chamadas e na orientação das equipes que estão em atendimento externo (veja o quadro na pág. 25). A rotina é puxada porque, geralmente, eles conciliam o serviço com outro emprego. Nas 27 bases que estão espalhadas pela Grande BH, as equipes contam com uma precária estrutura de apoio. Na da Rua Paraíba, as instalações lembram uma república universitária. Há dois beliches velhos e alguns colchões finos, onde os profissionais se revezam para descansar entre uma chamada e outra. Um forno de micro-ondas repousa sobre uma geladeira quase vazia. Contrariando as recomendações dos próprios médicos, porém, a alimentação por lá não costuma ser muito saudável. É que eles nunca sabem quando será possível parar e fazer uma refeição decente. E os serviços de delivery acabam sendo os grandes aliados. Pregados na lateral da velha geladeira, os adesivos magnéticos dão a dica das preferências: pizza, sanduíche e comida chinesa. “É a minha última tentativa de fazer dieta”, disse o médico Eduardo Nacur, que exibia sua mexerica e dava uma gargalhada. Bom humor parece ser requisito fundamental para dar conta do trabalho estafante e quase sempre dramático no serviço de urgência. “Apesar de trabalhar tanto, quando quero arrumo tempo para namorar, e você não imagina o poder de sedução deste uniforme azul”, disse o enfermeiro André Leite. 

Outra característica imprescindível é a habilidade para não se envolver emocionalmente nos casos. O que é ainda mais complicado se a vítima tem algum tipo de relacionamento com o profissional encarregado do atendimento. Em maio, o técnico em enfermagem Sinval Freire Júnior estava dentro da ambulância quando ouviu o rádio passando o endereço de sua própria casa. “Era a minha mãe”, lembra. “Do Prado até o bairro Paulo VI, foram os cinco minutos mais longos da minha vida.” Freire não conseguiu ajudar a mãe, vítima de uma parada cardíaca, mas cada vida que salva lhe parece uma espécie de compensação.

“Às vezes, temos de fazer atendimentos sociais”, admite o médico Nacur. Em uma madrugada de plantão, a atendente transferiu para ele a chamada de um homem apavorado, pedindo socorro para sua mulher, em trabalho de parto. A bolsa havia estourado e a gestante já sentia as contrações. Não chegava a ser uma urgência, mas o relato do outro lado da linha sensibilizou Nacur. “Ele me contou que o dinheiro do táxi já estava separado para quando a hora chegasse, mas nenhuma cooperativa queria, às 4 da manhã, mandar um carro para o endereço dele.” O médico respirou profundamente, perguntou se a malinha do bebê estava pronta e avisou: “Estamos indo para aí”. O trabalho de parto poderia levar horas e não havia sinal de complicações. Mesmo assim, Nacur não resistiu ao chamado do futuro papai. 

Odin

Sem descanso: equipe aguarda na base da Rua Paraíba pelo próximo chamado, que pode surgir a qualquer momento 


Esparramado no colchonete da base, ele mal havia terminado de relatar essa história quando ouviu um novo chamado do rádio: homem com obstrução de vias aéreas. Seis minutos depois, já estava com sua equipe no Anchieta para atender Francisco Portugal Moreira Rocha, de 40 anos. Vítima de paralisia cerebral, ele havia engasgado, o que desencadeou uma série de convulsões. A rapidez com que a ambulância chegou ao local foi importante. Decisivo, porém, foi o auxílio que o médico deu ao pai antes de deixar a base. “Por telefone, ele me explicou como fazer respiração boca a boca, e foi isso que salvou o meu filho”, contou o juiz aposentado Ricardo Vasconcellos Moreira Rocha. Esse foi o último atendimento do dia 6, às 19h35. 
Na madrugada em que VEJA BH acompanhou a rotina da Unidade de Suporte Avançado da Rua Paraíba, não houve atendimentos, o que é um fato raro. As noites de sexta para sábado costumam ser as mais movimentadas. A equipe da Savassi só voltou a ser acionada pela manhã, às 10h47. O médico Marcelo Nascimento, a enfermeira Mariana Vieira de Andrade e o motorista Enivaldo de Oliveira - que voltou à base para cobrir o plantão de um amigo - saíram em direção ao Gutierrez e viram a história se repetir: mesmo com sirenes ligadas, não foi fácil ultrapassar os carros no congestionado trânsito da capital. Catorze minutos depois, o pequeno grupo entrou no prédio carregando o desfibrilador. Pouco antes do meio-dia, os três deixariam o endereço cabisbaixos. O paciente de 42 anos não havia resistido à parada cardiorrespiratória. Às vezes se perde a batalha pela vida, mas os soldados do Samu estão sempre prontos para entrar em combate.


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